Anotações sobre o movimento das/nas ruas
As manifestações que sacodem o país há quase duas semanas têm feito cair muitas “certezas”. Ao passo em que deixam estarrecidos alguns dos que andam inebriados com as benesses dos cargos que ocupam e muito por conta disso vivem mimetizando o discurso da prosperidade, fez também ressurgir das cinzas e das soturnas profundezas antigos profetas do apocalipse que durante muito tempo andavam a espreita, entre um e outro ato, esperando o melhor momento para, ampla e escancaradamente, regurgitar o seu ódio visceral contra os “diferentes”.
Caracterizados pela atuação nas ruas dos chamados skinheads ou neonazistas de variadas estirpes, esses grupos passaram a ter suportes ideológicos mais claros com a proliferação de páginas eletrônicas e personagens, fakes ou não, que clamam pela restauração do regime militar como forma de combater o que eles chamam de “inimigo vermelho” (sic).
Embora não devam ser negligenciados, esses arroubos totalitários que agora tornaram-se evidentes e ganharam alguma notoriedade com formação de falanges e divulgação de campanhas, a meu ver, não parecem estar em consonância com os projetos hegemônicos levados a cabo pelos que, de fato, estão com a batuta na mão. Mas, então...
Quem está com medo das ruas???
Parece-me sintomático e não é por acaso que quem mais tem reverberado a oportunidade de uma escalada ao fascismo, com um iminente golpe de estado, como desenlace dessas atuais jornadas da juventude, são exatamente aqueles que, vendo ruir o seu mundo de faz de conta, da propaganda da TV, tratam de defender as suas posições no Estado mesmo que ao custo de uma racionalidade mais criteriosa e menos apocalíptica.
Como se à burguesia em tempos hodiernos necessitasse ou mesmo nutrisse algum interesse por um governo distinto das variações políticas institucionalmente colocadas. É claro que numa conjuntura de avanço nas posições políticas de classe, ou até mesmo numa disputa entre segmentos da própria burguesia, essa alternativa não deve ser descartada como uma possibilidade histórica sempre a mão. Entretanto não parece apontar nesse sentido a atuação e a intervenção dos agentes políticos burgueses na condução dos seus negócios aqui no Brasil.
Assim, demonstrando não entender muito bem a amplitude do que está ocorrendo, governistas empedernidos e apoiadores mais ou menos tenazes, assustados com o expressivo movimento de massas que surge a revelia dos seus burocráticos aparelhos de representação, correm a disseminar o pavor do que pode sair das ruas, clamando por um imediato retorno à normalidade. Chegaram ao ponto de ameaçar quem não quisesse ver que “o gigante acordou”.
Por seu turno, governantes de distintas plumagens estimulam e/ou toleram a feroz ação repressiva das suas respectivas polícias por toda parte. Muito embora os casos de maior repercussão tenham ocorrido em Minas Gerais, na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo, no já mítico Dia de Santo Antônio (13/06) e, é claro em Belém, Ribeirão Preto e Goiás, com as mortes já notificadas, sob o discurso de combater “uma minoria de vândalos e baderneiros”, a polícia continua distribuindo bombas de gás, spray de pimenta e balas de borracha até para quem nem sequer participa das manifestações.
Arbitrariedades contra manifestantes e jornalistas, autoritarismo, descontrole e bestialidade tem marcado a veemente ação policial, mesmo depois da inflexão tática feita pelas “autoridades” depois do terror do dia 13.
Vândalos? Que (são) vândalos?
Instigante tem sido também a caracterização de vandalismo realizada reiteradamente pela imprensa e também por prefeitos, governadores e até pela presidenta em seus pronunciamentos sobre os protestos.
Com intuito de isolar ações de resistência mais radicais, como os casos de desobediência civil, ataques contra órgãos da administração pública, contra grandes empresas e/ou corporações financeiras; bem como aos comerciantes em geral, que invariavelmente ocorrem em todos os lugares do mundo como parte de mobilizações diversas, aqui no Brasil vêm sendo tratados como se fossem algo completamente estranho à tomada das ruas.
É como se as manifestações devessem ser reservadas apenas para uma massa de jovens de “classe média”, bem instruídos(?) e educados, que, repentinamente percebeu que pode ter outro tipo de participação política para além do despejo do voto na urna. Então para esses bem cheirosos, as manifestações ganham um ar de festa cívica e que, inclusive, pode fazer parte do currículo pessoal como forma de demonstrar uma preocupação cidadã com o “futuro do país”, constituindo-se enquanto importante atributo na disputa por postos de trabalho.
Contudo, para aquele jovem da periferia, para o qual a sociedade tem quase nada a oferecer, para o qual vem sendo negada educação de qualidade, assistência à saúde, perspectiva de um futuro distinto e que, além de tudo, tem que ficar várias horas do seu dia dentro ou esperando por transporte público de péssima qualidade para ir à escola ou mesmo para trabalhar em postos informais ou precarizados de toda espécie, qualquer tipo de reação extremada deve servir como salvaguarda para a atuação dantesca da repressão. Mais do que isso, é como se, para aquela sociedade que nada lhe oferece, ele não pudesse sequer excretar as suas mazelas, devendo conter os seus impulsos mesmo quando violentado pela polícia.
Maior parte desses indivíduos que põem a risco sua própria integridade em ações desse tipo o faz porque não tem muito a perder, ou ainda mais, como resistência, mesmo que enviesada, pela oportunidade proporcionada de ir à forra, fazendo ver a todos que a prosperidade econômica cantada pelos governantes, não chega para todos com a mesma intensidade. Violência é a principal característica do seu cotidiano, e essa é, com certeza, mais uma forma do “asfalto” perceber isso. Esses saqueadores, agitadores e radicais diversos, embora não representem a totalidade das demandas, certamente são parte integrante das principais bandeiras agitadas, por mais que as autoridades queiram excluí-los e muitos outros “cidadãos-de-bem” marginalizá-los.
É óbvio que entre esses existem os “marombados de academia” (aqui com todo o risco da generalização fácil), existem também os infiltrados, com intenção deliberada de obliterar percepções e conturbar sentidos e até os que agem pelo torpor da violência per si. Todavia, desqualificar esse tipo de ação como se também isso não fizesse parte da legítima indignação de muitos só interessa a quem tem que dar resposta às manifestações das ruas. Caracterizá-los tão somente como “vândalos”, serve apenas para continuar escamoteando a sua existência, relegando-os ao gueto onde estão muitos desses e de onde outros tantos gostariam que eles não pudessem sair...
Como corolário desse processo, uma estrepitosa campanha midiática desenvolvida nesse sentido, vem buscando estimular a delação desses indivíduos, o que já vem sendo reivindicado por comandantes da PM e compartilhado em redes sociais por “manifestantes” a fim de que o próprio movimento os entregue como barganha para as malhas da repressão.
Tempos de homens, partidos?
Creio que já há um consenso quanto ao fato de que o combate ao reajuste das passagens de ônibus foi “apenas” a gota d’água que fez o movimento transbordar. É claro que a precariedade do transporte público afeta a quase totalidade da população, mas as manifestações de massa que estamos vendo agora apontam para a emergência de variadas demandas, mais ou menos abrangentes, que fazem parte do cotidiano dos que trabalham e/ou estudam nas grandes cidades do país.
Para além disso, as manifestações trazem também a participação ativa dos muitos que deixaram de ver na política tradicional alguma possibilidade de reformas que melhorem significativamente as suas condições de vida. A corrupção e o burocratismo são apenas as franjas de um processo bastante amplo que leva ao questionamento de todo o sentido da organização política do Estado Moderno.
A experiência dos governos petistas que foram os últimos a carrear o sentimento popular de indignação com a política tradicional, utilizando-se de uma remanescente, mas mal forjada “esperança” na atuação política, somada a um substrato social considerável, conquistado a partir da sua relação ativa com o sindicalismo e os movimentos sociais, no geral, redundou numa grandiloquente frustração.
Militantes que diziam representar o derradeiro bastião da moralidade e do respeito à coisa pública, após pouquíssimo tempo no governo, mostraram-se mais do mesmo. Viram-se encetados nas comezinhas tramas de corrupção e apadrinhamento, cooptando antigos opositores e acobertando práticas de tradicionais oligarquias, em troca de favores, votos e apoios eleitoreiros, amplamente denunciados e comprovados.
Depois de tudo isso, não é nada surpreendente que a população expresse uma mais completa descrença nos instrumentos tradicionais de representação política. Aliás, um traço característico desse fenômeno vem sendo expresso como mais uma filigrana da nossa política usual por meio do bordão “não me representa”, tão propalado até bem pouco nas redes sociais.
Esse déficit de democracia, esse desconforto com as promessas não cumpridas de liberdade, essa insolvência da política ainda firmada nos ideais burgueses do iluminismo, uma incompatibilidade do atual modelo de representação com as complexidades da sociedade contemporânea, uma ampliação fosso entre governantes e governados, a diminuta ou mesmo a inexistência de responsividade e/ou accountability nos mandatos eletivos, dentre outras tantas caracterizações no âmbito da ciência política já vem sendo problematizadas há algum tempo.
Em paralelo, muitas têm sido as manifestações, pelo mundo afora e em meio à crise econômica estrutural do capitalismo, que tornam ainda mais evidente os limites do aparato político atual para fazer frente às necessidades de dominação e controle das massas postas em movimento pelo capital.
É a partir daí que procuro entender a negação dos partidos e a rejeição aos políticos tradicionais, presentes de maneira marcante nesse atual movimento em nossas terras tropicais. Claro que são muitas e ainda mais amplas as possibilidades de análise desse fenômeno e é exatamente por isso que não me parece apropriado tentar restringi-lo, remetendo a sua caracterização a uma mera reverberação de um discurso neofascista como tem sido feito indiscriminadamente.
Penso que tais comportamentos das/nas ruas devem ser vistos por quem propõe uma revolução política maximizadora como um claro sinal de avanço, como algo bastante progressivo e até mesmo necessário para que novas alternativas de poder político possam surgir. Parece-me claro que quem está rechaçando a participação de partidos organizados nas marchas de hoje o faz porque os consideram ilegítimos e, nesse caso, claramente oportunistas na medida em que não conseguiram se diferenciar dos que estão no governo ou a seu serviço.
No que diz respeito a alguns dos partidos de esquerda (como o PSOL, PSTU, PCB e PCO, dentre outros) que desde o princípio fazem oposição institucional ao governo e que mesmo assim foram alvo dessa repulsa1, penso que essa reação precisaria ser entendida como repercussão da negatividade da experiência petista, aliada a ampla participação dos veículos de comunicação de massas, que se esmeraram em reproduzir a consigna “sem partido” como se fora uma expressão “natural” das mobilizações.
Além de restringir a atuação política dessas agremiações, essa postura funciona ainda de maneira a minimizar ou mesmo neutralizar possíveis desdobramentos originários de uma centralização da pauta política em torno de bandeiras mais consequentes como a inclusão do tempo de deslocamento na jornada de trabalho, aumento geral de salários, ou mesmo a radicalização do movimento em torno do passe livre a ser implementado imediatamente.
Vale ressaltar que, paradoxalmente, como os políticos institucionais e seus partidos saíram de cena com medo das rebordosas, são exatamente as grandes corporações da mídia que têm atuado com funções tipicamente partidárias, pautando governos e comandantes de diversas patentes, tanto para a caracterização como para a repressão ao movimento.
De todo modo, ao mesmo tempo em que essa linha de interpretação poderia absolver os tais partidos de esquerda das responsabilidades quanto ao que vem sendo acusados, por outro lado expressa a incapacidade dos mesmos em se distanciar do legado petista, mostrando-se distintos do que representaram o PT e seus satélites na condução do Estado. É possível que, de fato, ao fim e ao cabo, para essa população não haja lá muita diferença, todavia essa caracterização indiferenciada e a priori, revela muito mais um traço geral de afastamento de muitos das questões da política do que, efetivamente, um afinamento político à direita.
Também os sindicatos e uma parte dos movimentos sociais vão de roldão nessa enxurrada. Vistos como correia de transmissão dos interesses do governo, totalmente cooptados e a serviço dos seus próprios interesses burocráticos e, não raro, até pessoais, alguns de seus militantes vem sendo hostilizados, sendo obrigados a baixar bandeiras e, no limite, a se retirar da manifestação. Assim como no caso dos partidos, creio que a alternativa mais indicada só pode ser a verdadeira disputa política dessa massa que, nas ruas, vem levando a sua aversão e ojeriza aos políticos a um patamar de instabilidade tal que, adequadamente direcionado, potencializaria ainda mais os protestos.
Penso que combater o movimento e/ou tentar desqualificá-lo como se fosse apenas uma iniciativa popular que, embora legítima já tenha sido ganha pela direita reformista ou mesmo reacionária, só interessa aos que estão no governo, pois joga fumaça nos protestos, obliterando os ataques dirigidos à sua própria atuação palaciana e, com isso, minimizando possíveis consequências.
Nesse cenário, como ainda estamos em meio às mobilizações, apesar de haver sinais de algum refluxo aqui ou ali, acredito que a postura melhor indicada para aqueles que se colocam à esquerda e que estão em busca de construir condições históricas para uma ruptura com a sociedade do capital, deve ser a de apoiar, de estimular, de impulsionar firmemente o movimento nas ruas em torno formas de organização mais avançadas e em consonância com o desenvolvimento dessas lutas.
Creio que poderia partir desses segmentos organizados propostas já desenvolvidas em mobilizações recentes pelo mundo como a de criação de acampamentos perenes em praças representativas em cada cidade; acompanhadas de assembleias populares convocadas regularmente para decidir os rumos das manifestações, com definições de tarefas para manutenção das atividades. Em paralelo, é hora das organizações dos trabalhadores colocarem claramente as suas feições, indicando paralisações e greves gerais em apoio ao movimento e em torno de pautas classistas mais representativas, tais como: redução da jornada de trabalho; aumento geral de salários; e custeio integral do transporte público, por exemplo.
Pode ser esse um grande passo para aprofundar a experiência popular, aproveitando a situação extraordinária em curso para tencionar o surgimento de formas de organização históricas mais avançadas como são os conselhos de trabalhadores. Também não tenho certeza... Pode ser...
Iuri Ramos
24.06.2013, dia de São João
1- Deixemos de lado as provocações dos skinheads, neofascistas, e coisas do gênero, porque são marginais para esse elemento da análise e porque que têm outros interesses que precisam ser entendidos de maneira diferenciada.